Joãozinho no Morrinho

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuca - Data: 08/01/2011
Joãozinho no morrinho - (um pequeno passeio pelo mundo do aprendizado de Parapente) - set 2005
 
Semana passada encontrei o Joãozinho na fila do filme "Os dois filhos de Francisco". Lá no shopping Frei Caneca.
 
Quase morro de vergonha, pois o cara me grita "SIVUCAAA!!" pra fila inteira escutar e o povo já vai tentando encontrar o velho sanfoneiro quando dá de cara com o careca subversivo aqui. Subversivo porque ele me chamou pra furar a fila e eu aceitei, ora, você não aceitaria? Até o presidente aceitaria, fala sério...
 
Na fila ficamos batendo papo e ele relembrando os tempos de morrinho, da suadeira, das raladas, dos hematomas debaixo do braço, da sensação de frustração dentro do emaranhado de linhas e pano que ele se transformava cada vez que esquecia pra que lado correr.
 
Ele ia me contando e eu olhando a cara apaixonada dele, não por mim, sai pra lá, mas pela brincadeira que eram aqueles dias.
 
- Sivuca, eu sofria tanto, que de noite eu ficava mais de meia hora debaixo do chuveiro relaxando enquanto os outros alunos ficavam putos na portaria de hotel me esperando pra jantar. Parecia que eu não ia aprender nunca. Eu inflava a vela e o professor me pedia para andar o mais devagarzinho que eu pudesse... era tão difícil! Eu tinha que frear o parapente além da conta e ele ia quase estolando enquanto ele ia gritava: "olha a postura!!, olha a postura!!". Quando finalmente eu acertava, ele me mandava andar o mais rápido que fosse possível, mas não podia decolar. Era muito difícil, pois se eu corria a vela queria voar e então eu tinha que diminuir a velocidade, mas não podia frear muito. Eu percebia que se eu respeitasse os gritos de "olha a postura" do professor, me mantendo mais perto do chão, com as pernas flexionadas, eu conseguia fazer mais fácil, assim quando a vela queria subir muito eu tinha uma margenzinha de pernas pra compensar. Era o que dava certo, pois nas vezes que eu ficava esticadinho eu só me ferrava. Tem um monte de gente que corre esticadinho né, Sivuca? O professor tirava sarro, falando que eu parecia uma secretária alucinada. "Tem que agaixar! Ele dizia... e quando eu conseguia dava certo!
 
Quando eu finalmente conseguia inflar o parapente, queria correr, mas ele não deixava, inventava de fazer slalom e era muito difícil, pois eu tinha que correr pra fora da curva freando o lado de dentro pra fazer o tal do raio. Ele dizia que isso era pra imitar a curva quando o parapente estava em vôo, no começo foi complicado pra imaginar isso, mas o professor ficava sempre insistindo pra gente tentar imaginar o parapente voando realmente e não parado no ar como o que estamos acostumados a ver nos vídeos. Eu dizia pra ele que mesmo nos vídeos eles estavam voando, mas ele rebatia dizendo que o enquadramento dava a impressão de que o parapente estava parado e aí as pessoas tinham a tendência de pregar esta imagem nas mentes delas. Aí ele dizia para eu imaginar o parapente voando sem nunca esquecer do barulho do vento, afinal, dizia ele, toda imagem tem que ter som.
 
Um exercício que eu gostava era aquele de tentar bater a pontinha da vela no chão e fazer ela voltar pra cabeça. A gente fazia até competição disso no morrinho, valendo cerveja de noite. Eu não era muito bom, mas tinha um cara que tinha umas pernas que corriam muito e ele sempre conseguia. Sabe que outro dia vi esse cara fazendo uma decolagem em Atibaia e quando o cara foi correr, tinha uma galera no meio do caminho. Ele correu em ziguezague em volta do povo com a vela na cabeça e decolou direitinho, ficou todo mundo babando. Aí eu lembre do exercício do morrinho, putz, como ajuda, né?
 
Tinha a parada do controle de pressão e a do movimento do corpo. A gente tinha que fazer uns exercícios com os olhos fechados e perceber a vela estolando, no começo era difícil, mas depois a gente conseguia evitar o estol sem sequer olhar para cima, aliás o professor não deixava a gente ficar olhando muito pra vela, ele dizia que olhar pra vela era só para verificar se aquilo que a gente tinha feito tinha dado certo. No começo tive dificuldade de entender, mas ele explicava que a gente fica muito dependente do olhar e que se olha menos pra vela, abre espaço para perceber outras sensações "não-visuais" segundo ele. Pois era verdade, o tempo ia passando e a gente ia percebendo que a vela transmitia várias mensagens por som e por sensação física, muito legal!
 
Para fazer direito os exercícios a gente tinha que se concentrar também nos movimentos do corpo, então ele nos dava exercícios que usavam o movimento do corpo de frente para o vento e reverso também. Quando a gente usava o reverso, o movimento era ao contrário e isso confundia, mas com o treino isso ia ficando cada vez mais fácil e logo a gente conseguia administrar a vela com o corpo usando o mínimo de freio.
 
Sabe, Sivuca, tinha um exercício que era assim: a gente corria o máximo que podia como se fosse decolar, aí o professor apitava e a gente tinha que brecar do jeito que desse sem deixar a vela cair. Aí ele apitava de novo em qualquer momento e lá ia a gente desatando a correr novamente. Ele fazia disso uma corrida com dois, três ou até quatro parapentes ao mesmo tempo e ganhava quem conseguia ir mais longe. Quem desrespeitasse o apito era penalizado.
 
- E voar do morrinho Joãozinho? Eu perguntei.
 
- Ah, Sivuca, voar mesmo só de prêmio no fim do dia. Depois que tinha treinado o dia todo, suado até não poder mais então no final da tarde a gente subia pro morrinho e podia fazer duas decolagens cada um. O professor dizia que a terceira decolagem era a do acidente porque a gente ia estar cansado e desatento então era melhor fazer só duas. Então eu aproveitava estas decolagens ao máximo, fazendo tudo do jeito "olímpico".
 
- Jeito Olímpico? Que é isso?
 
- Jeito Olímpico é um negócio que o nosso professor ensinou a gente que era procurar fazer todos os movimentos do jeito mais perfeito que fosse possível. Na verdade tinha um jeito que só ele conseguia fazer, ele parecia um bailarino, com a paradinha. A inflada perfeita e simétrica, uma corrida linda, o lançamento do peito para frente, aqueles dois segundos imóvel enquanto ia se afastando do chão e depois sentando na selete. Era lindo! A gente se esforçava esticando todos os músculos, como se fosse uma ginástica olímpica. Era legal como isso ajudava, pois eu sou meio desajeitado né? E aí com esta obrigação do movimento olímpico, eu estava sempre me esforçando pra fazer movimentos bonitos. O professor dizia que quando um piloto voava de forma bela e harmônica, também voava de forma segura.
 
- E que paradinha era essa?
 
- Ah, era assim: a gente nunca saía direto inflando o velame, logo antes a gente dava uma paradinha e imaginava os movimentos que a gente ia executar, um por um separadamente, como se fosse um filme que repetia e cada vez focava em uma parte do corpo. Só então é que a gente inflava a vela. Isso ajudava bastante, pois servia como um foco naquilo que a gente ia fazer logo depois, desligando a gente daquilo que tinha acontecido logo antes.
 
- E como vocês ficavam sabendo quando podiam fazer o primeiro vôo?
 
- Ah, só quando passava na avaliação.
 
- Avaliação?
 
- Isso mesmo, num determinado fim de semana, a gente fazia duas avaliações, uma logo de cara antes de começar o treino e outra no final do domingo. Se não passasse na primeira ainda tinha a chance de treinar o fim de semana todo pra passar na do domingo, que era a derradeira. Só voava quem passasse nessa. Pela sua cara, você quer saber como era a avaliação, né Sivuca?
 
- Pois é...
 
- Então, era assim: primeiro a gente tinha que inflar o parapente e segurar ele inflado sobre a cabeça durante um minuto inteiro, aí fazia a corrida de decolagem e assim que tirava o pé do chão tinha que abortar e pousar de novo sem cair e mantendo a vela inflada de preferência. Depois a gente inflava e tinha que fazer um slalon perfeito com quatro mudanças de direção e retornar para onde tinha começado a corrida sem desinflar a vela. Era proibido estolar e se a vela colapsava tinha que corrigir sem deixar ela cair. Se não tinha vento, então a gente fazia o slalon com a corrida e deixava o resto para quando o vento voltasse. O interessante é que não era o professor que decidia, eram os outros alunos e todo mundo tinha que explicar direitinho o que cada um tinha errado.
 
Quando finalmente chegava o dia de fazer o primeiro vôo a gente já era como uma família, pois todo mundo podia e devia dar opinião sobre a técnica do outro desde o início e então isso ia quebrando o gelo ao mesmo tempo que ajudava a entender melhor os movimentos.
 
Nunca vou esquecer o primeiro vôo, pois eu precisava pousar no alvo. Acontece que eu já tinha errado a aproximação e ia pousar muito antes, mas como tinha que ter um alvo mesmo assim, escolhi uma bosta de vaca e fui com os dois pés direto em cima dela, foi uma alegria, pois consegui acertar o alvo mesmo não sendo o oficial. O professor dizia que tinha que ter sempre um plano B e me cumprimentou com um abraço me parabenizando justamente por eu ter conseguido arrumar um plano B.
 
Depois disso rolou um banho de cerveja no pesqueiro, mas isso já é outra história. Xí Sivuca, olha a fila ta andando, vamos ver os dois filhos de Francisco que a crítica ta boa!!
 
Silvio Carlos Ambrosini – Sivuca – www.ventomania.com.br
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