O bom instrutor

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuka - Data: 27/04/2011
Um bom instrutor precisa ser um bom piloto ou um bom piloto pode ser um bom instrutor?

Conheço bons advogados e conheço bons professores de advocacia. Conheço bons engenheiros e conheço também bons professores de engenharia. Conheço bons programadores de computador e conheço bons ... bem... todos os professores de programação são ruins... brincadeiras à parte, sou questionado as vezes sobre minha velha afirmação de que um bom instrutor não precisa necessariamente ser um excelente piloto.

Algumas pessoas chegaram a me dizer que minha afirmação era totalmente absurda e aí comecei a pensar sobre o assunto me questionando: "Afinal, qual o motivo de opiniões tão divergentes?" Afinal, quando uma pessoa discorda um pouquinho de você em algo que ambos dominam, é compreensível, mas quando uma pessoa do mesmo universo discorda totalmente, deve haver algo mais a ser analisado.

Acho que a questão começa na definição do instrutor. Afinal, o que é um "Instrutor de Parapente", ou de qualquer outro esporte? Surpreendentemente as definições variam bastante. A verdade é que não existe um consenso de 100% sobre esta questão. Não é incrível?

Assertiva 1) O instrutor é o cara que passa o que ele sabe para o aluno.
Concordo 100%! Sem dúvida alguma, o instrutor é um veículo que transporta as informações que estão dentro de sua cabeça até a cabeça do aluno. Podemos então concluir que um instrutor que possua muita experiência, mas muita experiência mesmo, possuirá também uma quantidade maior de informações para passar para seus alunos o que automaticamente ditará a qualidade do processo de aprendizado, você concorda com isto? Vamos continuar:

Assertiva 2) Um instrutor que possua uma habilidade fenomenal no domínio de seu parapente, terá automaticamente ferramentas práticas mais completas e precisas para alimentar seu aluno com material de melhor qualidade.
Não há como discordar, afinal sem conteúdo não existe processo de aprendizado, você concorda com isto também?

Antes de analisar as duas afirmativas acima, gostaria de convidar você a usar sua imaginação e viajar junto comigo na seguinte historinha:

O engenheiro João vivia com sua família em uma fantástica casa, equipada com os mais diversos itens da última tecnologia, TV Led, Home Theater, Geladeira de última geração e vários outros itens igualmente fantásticos. Sua esposa possuía uma linda cristaleira que alimentava com os mais impressionantes copos e taças. Igualmente deslumbrantes eram seus móveis, enfeites e demais objetos. Para arrematar, o engenheiro João tinha em sua garagem, uma picape enorme equipada com um motor ultrapotente.

João trabalhava junto com José mas este, tinha alguns problemas financeiros e sua casa não era assim tão completa quanto à de João. Apesar disto eles eram muito amigos, suas esposas e filhos estavam sempre juntos e passavam deliciosos finais de semana fazendo festas ou passeando.

Um dia João e José receberam ao mesmo tempo, uma proposta de emprego em outra cidade. Era uma proposta irrecusável, com um importante aumento do salário para os dois e ainda três anos de aluguel pagos antecipadamente em casas de alto padrão para que ambos dispusessem do tempo que necessitassem para vender suas casas atuais e com o dinheiro finalmente cada um comprar outra casa na nova cidade.
Ambos deram a notícia para suas famílias e todos adoraram, pois a nova cidade ficava no litoral e todos poderiam ir para a praia quando quisessem.

Rapidamente decidiram se mudar e num sábado, João e sua família fizeram um mutirão para carregar as coisas na picape. Utilizaram caixas de papelão, plástico bolha e muitas cordas para acomodar todas as coisas na picape, porém o espaço era pequeno e tiveram de improvisar um pouco amontoando as coisas como puderam.

Apesar de não contar com grandes fundos, José preferiu contratar uma empresa de mudanças, saiu um pouco mais caro, mas ele tinha medo de danificar seus objetos que haviam sido conquistados a duras penas.
Durante a viagem, aconteceram alguns imprevistos com João e sua família. Uma corda se soltou e uma caixa caiu na rua, ao menos foi isso que perceberam até que finalmente chegaram ao seu destino. Foi quando as coisas ficaram um pouco mais escuras. Muitos cristais haviam se partido, algumas peças essenciais haviam desaparecido, vários arranhões, alguns amassados em peças metálicas. Isso tudo sem contar no fato que João confessou que vários móveis haviam sido deixados para trás porque não havia como fazê-los caber na picape. A família ficou muito chateada e o resultado era que tudo estava descaracterizado.

Já com José a coisa foi diferente. O pessoal da empresa de mudança era bastante profissional e todos os objetos chegaram inalterados a nova casa. A família suspirou aliviada, bem diferente do estresse que agora povoava a casa de João.

Moral da história? Possuir muitas coisas não implica necessariamente em possuir a técnica necessária para transportar estas coisas de um ponto a outro sem que algo se quebre ou se perca no caminho.

Pensando em instrução, então podemos chegar a uma interessante conclusão: Não há nenhuma dúvida que se o instrutor for um excelente piloto e melhor ainda se tiver muita experiência, ele também terá automaticamente muito mais material para proporcionar ao seu aluno, porém há um problema: as informações estão "aprisionadas" dentro da cabeça do instrutor. O grande desafio agora, é transportar estas informações de modo que nada se perca durante o processo.

Para que isto aconteça, é preciso dispormos de um veículo adequado ao transporte, de "um profissional" para levar as informações de uma ponta até a outra. A chave chama-se "linguagem". A linguagem é a forma pela qual o instrutor transforma a complexidade das informações que ele possui em uma forma de entender que esteja ao alcance do aluno para que elas possam ser transmitidas ao seu aluno com o menor índice de perda.

Pensando desta forma, podemos também concluir que é perfeitamente possível que por mais técnica e experiência que um instrutor possua, uma baixa qualidade de linguagem poderá significar menos informações efetivamente transmitidas que aquelas passadas por um segundo instrutor que, embora não possua tanta experiência nem tanta técnica, porém dotado de uma linguagem de alta eficiência.
Finalmente, eu faria algumas pequenas modificações naquelas assertivas que ficariam assim:

Assertiva 1) O instrutor é o cara que possui habilidade em efetivamente transmitir o que ele sabe para o aluno.

Assertiva 2) Um instrutor que possua uma habilidade fenomenal no domínio de seu parapente, e esteja focado no método de ensino de forma a tornar-se um verdadeiro facilitador de linguagem terá automaticamente ferramentas práticas mais completas e precisas para alimentar seu aluno com material de melhor qualidade.

E completaria com mais algumas:
Assertiva 3) Um instrutor eficiente é aquele capaz de "traduzir" seus conhecimentos em uma linguagem acessível ao aluno, ao passo que um instrutor ruim é aquele que espera que seus alunos evoluam o suficiente para compreender sua linguagem particular.

Assertiva 4) Um instrutor de qualidade consegue transportar para o mundo da prática todos os ensinamentos teóricos de forma que os alunos consigam compreender estes ensinamentos de forma associativa, isto é, o conceito só se fundamenta na aplicação. Sem aplicação, o conceito simplesmente irá se perder.

Assertiva 5) Um verdadeiro instrutor prepara seus alunos para que se tornem melhores pilotos que ele mesmo. Somente assim ele terá a prova cabal que mais que um piloto, ele é um verdadeiro instrutor.

Assertiva 6) Um instrutor que é focado no aluno, coloca suas conquistas pessoais em segundo plano e concentra-se no processo de aprendizado dividindo decisões com seus alunos.

Esta informação pode ser completada da seguinte forma: O aluno deve participar ativamente do processo de aprendizado, o que quero dizer com isto é que o instrutor deverá apresentar um plano de ação com objetivos pré-determinados aos seus alunos e pedir sua colaboração e sugestões sem nunca impor uma metodologia. A imposição do método eleva o instrutor a uma desagradável posição paternalista ou pior, militarista o que contribui negativamente para a empatia dos alunos. É claro que o método existe e está pré-estabelecido, porém a discussão prévia de cada etapa desmistifica o método trazendo-o ao patamar do aluno. Este se sente respeitado o que contribui automaticamente para um ganho no comprometimento do aluno com o processo de aprendizado.

Assertiva 7) O instrutor estratégico valoriza as etapas intermediárias do curso.
A inquestionável vantagem disto é que o instrutor torna-se o agente responsável por refinar o foco básico do aluno. Este vem ao curso com um único e claro objetivo: "aprender a voar". Entretanto, este "aprender a voar" encontra-se a uma distância considerável, ao ponto de tornar-se um símbolo abstrato. Quando o instrutor consegue transformar cada exercício em um objetivo intermediário, o aluno consegue manter um alto nível de interesse no processo de aprendizado porque os objetivos intermediários são muito mais concretos que a abstração do objetivo final "aprender a voar".

Assertiva 8) O instrutor eficiente transforma cada questionamento em objeto de discussão.
Ao trazer ao grupo em forma de discussão, uma dúvida de um aluno, ou qualquer fato que faça parte do universo do esporte, o instrutor incentiva o aluno a pensar ajudando-o a aumentar seu nível de envolvimento com o esporte e consequentemente delegando responsabilidades que culminam no essencial comprometimento com sua própria segurança. É um círculo: Ao trazer ideias claras, aumenta-se a compreensão que aumenta a responsabilidade que aumenta a segurança. No fim... todo mundo está feliz.

Assertiva 9) Um instrutor eficiente possui um papel social claro dentro do esporte.
A partir do momento que o aluno percebe que seu instrutor tem bons relacionamentos, sejam com outros pilotos, instrutores, clubes e associações, ele também se sente identificado com a coletividade do esporte integrando-se ao meio e fugindo das panelas, rivalidades e bairrismos que só trazem porcarias para nosso querido esporte. Não é preciso ser bidú para saber que quanto mais integrado ao meio social, maiores são suas chances de conseguir melhores resultados.

E finalmente, a assertiva 10) Um instrutor exemplar frequenta cursos, campeonatos, clínicas, cresce no esporte assim como seus alunos.

Considero um erro quando o instrutor posiciona-se no topo de uma pirâmide repelindo novas oportunidades de crescimento como as clínicas de formação de instrutores da Associação Brasileira de Parapente, a oportunidade de participar de campeonatos, de fazer voos mais longos, de quebrar seus recordes pessoais. Nenhum aluno está interessado em ter um monumento como instrutor, o aluno necessita de uma referência dinâmica e ao mesmo tempo humilde e desejosa de crescer.

Talvez estas pequenas fórmulas ainda sejam insuficientes para determinar a eficiência de um processo de aprendizado, talvez elas tenham pontos equivocados a serem revisados, mas sem dúvida alguma estas pequenas fórmulas, de uma forma ou de outra, foram de grande ajuda para minha vida como instrutor.

Sinto-me sereno diante de nunca ter chegado a ser um instrutor tão competente quanto alguns outros instrutores, muitos deles grandes amigos meus, mas posso dizer que durante aquele período, vi alguns alunos meus tornarem-se melhores pessoas e isto é o que realmente importa quando se tem esta responsabilidade.

Sivuca - abril 2011 
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