O sexto sentido e o voo

Fonte: Kurt Stoeterau - Data: 08/01/2011
 
Além dos cinco sentidos que usamos habitualmente no nosso dia-a-dia, e dos três(visão, tato, audição) que usamos nos nossos vôos, o sexto sentido talvez seja o nosso sentido mais importante ao qual devemos estar atentos na nossa prática. Também conhecido como intuição, pressentimento, ou chamado simplesmente de “uma percepção estranha”, este sentido sutil, mas profundo, parece um sussurro interno a nos confortar, ou desconfortar, a respeito da escolha que optamos num dado momento. 
 
A forma de nos sensibilizarmos completamente a este sentido é não fazendo nada, melhor dizendo, é simplesmente estarmos presentes, sermos o que somos. É disso que trata a meditação oriental. A “simples” meditação nada mais é do que um estado de total vagabundice. Total vagabundice mesmo !!! Não fazer nada, nem pensar, apenas ser. Quem já tentou experimentar estar nessa tal vagabundice, percebeu que ser vagabundo nesse nível é infinitamente mais difícil do que a mais complexa das tarefas que nos possa ser imposta.
 
Passar dias e noites fazendo milhares de coisas, produzindo, é muito valorizado na nossa cultura materialista. Não há dúvida que o fazer leva ao ter, e que o ter não pode ser desprezado nesta densidade. Mas fazer e ter é somente o que nos importa enquanto seres “conscientes”?
 
Experimentar esse estado de não fazer nada é dissolver-se numa  espécie de condição de auto-testemunho, uma silenciosa percepção, um estado consciente de simplesmente estar atento, ser consciência somente,  um estado muito diferente do pensamento. 
 
Pensar é uma qualidade sutil do fazer, pensar é fazer algo sutil. Ter opinião, razão, são coisas sutis que resultam do fazer, neste caso do pensar. O fazer leva ao ter.
 
Se o fazer leva ao ter, o que nos leva ao ser? Ser é somente ser, é exercitar tão e somente a qualidade do ser, sem nada fazer, sem nada ter; não pensar, não ter razão, simplesmente estar consciente, ser consciente.
 
É à qualidade do ser, do estar, que pertence o sussurro do sexto sentido.
 
Qualquer pensamento é uma perturbação que impede a percepção do sexto sentido. O sexto sentido não é um pensamento, é uma percepção interna que se dá no coração, é um aviso não racional que sabe se o ser está sendo o ser que o universo planejou dentro de todo um contexto cósmico, holístico. Não é se o ser está sendo “certo ou errado” no sentido lógico, mental. A lógica é parcial, não é contextual, a mente é linear, mecânica, é competente como uma máquina, que serve ao mundo do fazer coisas, certas ou erradas, de produzir coisas, boas ou ruins, de ter pensamentos, bons ou ruins, presa ao que a razão julga como certo e errado, presa à dualidade. 
 
O coração pertence à sabedoria do ser, que simplesmente veio ser o que veio ser, que simplesmente é, e que não pertence à lógica mecânica que faz, que não pertence à mente. Neste sentido a sabedoria nada tem a ver com lógica, razão, não é um atributo mental. Esta sabedoria está numa oitava diferente da razão, da mente. Esta é cósmica, não nos diz se algo está certo ou errado, mas se estamos sendo, no presente momento, o que o universo deseja que sejamos como partícula, como parte do ser de todo um contexto cósmico que está sendo, mesmo que este ser contrarie a lógica, a mente.
 
Quando estamos em sintonia com o ser, quando estamos sendo os seres que somos, descontaminados da natureza “inteligente” da lógica, estamos em contato com a sabedoria. Não seremos espertos, não argumentaremos, seremos sábios, saberemos se devemos voar, ou não, simplesmente saberemos, sem um porquê, sem uma razão.
 
E a técnica para tal é nos sentarmos confortavelmente num lugar agradável, fechar os olhos e simplesmente não fazer nada, apenas estarmos conscientes. 
 
A respiração acontece, mas não somos nós quem respiramos.  O corpo sempre o fez por conta própria. Se fossemos nós a respirar, o que seria quando dormimos? O corpo respira enquanto estamos conscientes disso. 
 
O corpo está ali, nós o observamos, e se somos o observador, isto indica que o corpo não somos nós. 
 
Se pensamentos vierem, eles vêm, mas também não são nós. Se podemos observá-los então não somos eles. Somos quem os observa. 
 
Os pensamentos são como nuvens no céu. As nuvens aparecem e desaparecem, são passageiras, mas o céu sempre está ali. Podemos observar um pensamento como observamos uma nuvem. Estamos aqui e a nuvem está ali, o pensamento também está ali. 
 
No começo desse exercício de observação vemos somente nuvens, pensamentos, e esses pensamentos estão tão próximos que é como se estivéssemos entubados, envoltos por eles. Ainda estamos tão identificados com esses pensamentos, completamente entubados nessas nuvens, que nos confundimos com eles, achamos que eles são nossos, na verdade achamos que somos eles.
 
Mas quando conseguimos olhar para os pensamentos nos desidentificamos desses pensamentos, percebemos que não somos os pensamentos, mas sim quem os observa. Estamos desentubando. A transcendência começou.
 
Então passamos a ser o observador, e não os pensamentos. Mesmo assim ainda é difícil vislumbrar o céu entre as nuvens. Por enquanto só há nuvens, pensamentos, uns colados nos outros. Onde está o céu? Pelo menos já estamos desentubados, já existe a possibilidade de uma visão mais clara. 
 
Aos poucos as nuvens começam a se distanciar mais e mais de nós e umas das outras também, há intervalos de céu, o que começa a tornar mais clara a observação das nuvens, dos pensamentos. Um pensamento se forma, e dissipa, e assim outros também, mas o céu permanece. Se as nuvens são pensamentos o que seria o céu? O céu é ausência de pensamento, o céu é consciência somente, o céu é percepção pura, o céu somos nós.
 
Agora temos uma clara visão dos pensamentos, e uma percepção mais evidente de que somos o observador, consciente dos pensamentos. 
 
E assim o céu vai clareando mais e mais, até que não há mais nuvens, não há mais pensamentos. Mas ainda estamos ali, observando, conscientes.
 
Não poderíamos aprofundar esse estado de observação quando testemunhamos também as nossas emoções? Se conseguimos observar nossas emoções, também não somos elas. É como se as emoções fossem o ar nesse céu de consciência. Os pensamentos seriam as nuvens, enquanto as emoções, ainda mais sutis do que os pensamentos, seriam o ar. O ar pode estar quente, frio. O ar pode estar ventoso, calmo. O ar pode ter cheiros agradáveis, ou não. Como nossas emoções, que podem estar frias ou quentes, ventosas ou calmas, perfumadas ou não. 
 
Então o espaço, o vácuo, a ausência completa de algo palpável seria a presença completa, a consciência pura.
 
Ainda mais além desse estado, não poderíamos ser o observador do observador, a consciência da consciência?
 
É como quando descascamos uma cebola. Uma camada de casca sob a outra, até que finalmente, depois da última camada, o que sobra? 
 
Na cebola aparentemente não sobra nada, mas em nós sobra algo que chamamos de consciência, consciência de que não somos as camadas, e sim o que elas envolvem. E o que elas envolvem? O estado de consciência. Consciência pura é o que somos.
 
E, como consciências puras, saberemos se o ato de voar deve fazer parte do nosso ser naquele momento, ou não.
 
O sexto sentido seria uma espécie de percepção inconsciente. Inconsciente, pois está ligada a um estado ainda adormecido dessa consciência pura latente em nós. Enquanto adormecidos para essa consciência pura, o sexto sentido seria o nosso guia, o nosso mestre, o sábio que sabe, que não tem dúvida, pois está justamente além da dualidade mental do “certo e errado”, está além do fazer isso, ou aquilo.  Fazer isso, ou aquilo, é sempre uma dúvida, uma questão. Há a hipótese de fazermos isso, ou aquilo, mas não há a hipótese de sermos isso, ou aquilo. Somos apenas quem somos, não há dúvida disso. Se somos apenas consciência, se estamos conscientes, não há qualquer dúvida. Mas, se não estivermos conscientes de quem somos, a dúvida permanecerá. A dúvida pertence ao pensamento. Como pensantes somos duais. A palavra “dúvida” vem de “dual”.  
 
Como consciência pura não há a questão se o vôo deve fazer parte, ou não, do que o nosso ser é num dado momento. O sexto sentido não indica se devemos, ou não, voar, mas se naquele momento seremos parte do que chamamos “vôo”. 
 
A mente faz o vôo, a mente e o vôo estão separados. 
 
O ser é o vôo. O ser voa sem voar, sem fazer. O ser e o vôo são um.
 
E então? 
 
Quem ainda acha que somos os pensamentos, ou as emoções?
 
Infeliz-mente, mente infeliz, essa não é uma questão, não é filosofia. A mente, a filosofia é infeliz para entender esse tema. Isso é impossível, já que não é uma questão de entendimento, mas de uma experiência. O entendimento depende de uma dúvida, é dual. Como é possível transcender a dualidade através de um processo(a mente) dual? Não se trata de uma questão, não se trata de filosofar a respeito. A questão, o entendimento, estão presos no mundo dual da mente, da dúvida. Ao invés de entender, podemos apenas experimentar essa observação consciente. 
 
Da mesma forma um orgasmo não pode ser entendido, apenas experimentado. Não podemos entender o orgasmo, podemos apenas experimenta-lo. Não é possível fazer alguém compreender o que é um orgasmo. Por melhor que seja a nossa explicação e por mais habilidosa que seja a mente de quem recebe a nossa explicação, um eventual entendimento de um orgasmo não terá qualquer semelhança com a experiência de um orgasmo.
 
Sejamos conscientes. Não pensemos, sejamos.
 
Como finalização – ou iniciação - dois pequenos trechos do filme “Matrix”, dois grandes insights, dos muitos que a trilogia contém:
 
Neo – o personagem principal – que significa neo-buda, que por sua vez significa recém acordado, é um messias, um avatar, que no primeiro filme começa a transcender a dualidade. 
 
Um ensinamento de Morfeu a Neo: 
 
“Não pense que é...seja.” 
 
E, quando um dos órfãos ensina a Neo, enquanto este está tentando entortar uma colher:
 
“Não tente entortar a colher – diz o órfão - isso é impossível. Não é você quem entorta a colher, é você quem entorta a si mesmo...” - querendo dizer que Neo e a colher são um, querendo dizer para Neo não fazer(entortar), mas para ser a colher torta.
Não é o ser quem voa, o ser e o vôo são um.
 
Kurt W. Stoeterau - www.parapenteobediente.com
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