Cuidado! Cimento fresco!

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuca - Data: 08/01/2011
 
Quando tínhamos uma casa na Praia Grande, havia um vizinho cuja simpática esposa, porém não exatamente exímia motorista, não calculando bem o raio de giro do volante de seu fuscão, em uma de suas tentativas de adentrar à garagem de casa, avançou com violência atingindo e derrubando uma parte do muro e arrancando o portão. Ele, o vizinho, apesar do prejuízo, não ficou muito bravo, apesar também da aventura ter amassado o carro inclusive. Rapidamente comprou tijolos, cimento e tratou de consertar o muro semi-destruído. Ele parecia meio apressado, pois fez questão de montar o portão no muro antes que o cimento secasse e na mesma tarde tentou fazer um teste para ver se o portão já agüentava peso. Lógico que veio tudo abaixo novamente, afinal meia tarde não é suficiente para secar o cimento e ainda mais tendo de suportar o peso do portão.
 
Olhando para dois acidentes que aconteceram recentemente, gostaria de comentar algumas conclusões a que cheguei conversando com algumas pessoas e principalmente comigo mesmo.
 
 
 
Em ambos os casos, os pilotos estavam fazendo (ou se preparando para fazer) suas primeiras experiências com uma novidade (vôo termal).
 
Em ambos os casos, os pilotos tinham um bom controle de solo e estavam tranqüilos aparentemente e segundo depoimento de ambos que confirmaram isto.
 
Em ambos os casos, os pilotos tiveram dificuldade em administrar um processo novo ao mesmo tempo em que tinham de administrar um mais antigo.
 
O resultado foi ossos quebrados em ambos, um deles inclusive com necessidade de intervenção cirúrgica para estabilização das fraturas.
 
Durante o processo de aprendizado, somos apresentados a um sem-número de novidades. O ato de inflar e controlar o parapente no solo não se assemelha à maioria das coisas que fazíamos até então em nossas vidas. A não ser que tenhamos sido pilotos de Kite Surf, empinar pipas é o que mais parece com a decolagem do parapente, ou seja... Bastante distante da realidade.
 
Através dos exercícios que são ministrados no curso básico, os alunos aprendem a inflar e controlar o parapente com uma velocidade espantosa. Podemos concluir que os exercícios possuem um nível bastante relevante de eficiência.
 
Entretanto, temos (e quem não tem fique sabendo) consciência de que o ser humano, quando diante de um processo de aprendizado, passa de uma fase mental onde tudo o que vai executar tem obrigatoriamente, que passar por uma análise concreta, até uma fase mais intuitiva onde finalmente, uma vez que estes atos estejam realmente fundamentados, adquirem uma consistência que podemos chamar de cristalização.
 
Esta cristalização significa dizer que o conjunto de ações necessárias para se executar determinada tarefa que se encontrava sob administração de um processo mental, encontra-se agora dentro do domínio corpóreo (que podemos chamar de intuitivo), ou seja, o corpo realiza as ações sem que para isto seja necessária uma interpretação mental. Quando vemos uma bailarina que dá um grande salto, ela não está pensando passo a passo em cada movimento que está executando. Os movimentos acontecem comandados por uma outra instância da máquina humana. É o departamento motor que administra isto.
 
 
 
Vou abrir um parêntesis aqui para uma informação relevante.
 
(abre parêntesis)
 
A mente trabalha em uma determinada velocidade, todos sabemos disto. Se você precisa fazer um cálculo, ou descobrir qual o metrô que tem de tomar para chegar em determinada estação ou decidir qual o filme que você vai ver hoje ou escolher um prato do cardápio, enfim todas estas coisas não são processadas tão rapidamente como, por exemplo, quando alguém lhe dá um beliscão e você se afasta, ou então quando você escuta uma buzina na rua e vira a cabeça para olhar, ou quando um mosquito zumbe na sua orelha e você o abana involuntariamente, ou mesmo quando você muda as marchas do carro e assim por diante.
 
O que quero dizer é que a velocidade de processamento dos dados mentais é infinitamente mais lenta que a dos dados motores. E vou mais longe, se alguém lhe dá uma notícia que o entristece, seu corpo inteiro passa por uma infinidade de alterações de processos antes mesmo de você ser capaz de analisar a profundidade da notícia; você treme, sua temperatura se altera, seus músculos se contraem, sua barriga dói, seus olhos se enchem de lágrimas... e assim por diante.
 
Tudo muito mais rápido do que você seria capaz narrar simultaneamente o que está lhe acontecendo. Se o corpo é infinitamente mais rápido que a mente, as emoções são infinitamente mais rápidas que o corpo.
 
(fecha parêntesis)
 
Temos então um pequeno problema aqui: enquanto tivermos de pensar tudo o que fazemos, seremos lentos demais, estaremos sempre atrasados, ou alguém aqui sai executando wingovers direitinho só escutando as explicações? Claro que não! É preciso treino. Pois a mente não pode executar com maestria tarefas que pertencem ao corpo; ela as executa, porém muito lentamente, já que tem de processar, analisar, dar a ordem para a parte do corpo correspondente que finalmente irá agir.
 
Já pensou se um músico tivesse de pensar cada nota que irá tocar? A música não aconteceria.
 
 
 
Quando você se concentra exclusivamente em um processo motor, ainda consegue realizá-lo com um certo nível de eficiência, porém, se um fator externo lhe chama a atenção então fica quase impossível manter a qualidade dos resultados, a não ser que o corpo consiga realizá-lo sem a ajuda de sua mente.
 
Assim, uma simples decolagem, que lhe parece sob inteiro domínio (mental) está sujeita a erros muito especialmente se um fator extra, mudar seu foco de atenção. Desta forma, se você está pensando em cada etapa de sua decolagem, mas de um momento para outro sua cabeça tem de processar informações sobre ângulo de inclinação em térmicas, raios de giro, compensação de pressão, pilotagem ativa, etc... a atenção que sua decolagem estava recebendo diminui proporcionalmente e finalmente caso seu corpo ainda não esteja capacitado a administrar este processo de forma intuitiva, o processo correrá sério risco de erro e conseqüentemente de acidentes.
 
 
 
Assim, meus queridos; tenho algumas sugestões para os senhores e senhoras que estão lendo este texto:
 
1. Não aceite o simples entendimento mental de um processo físico como suficiente para sua realização livre de problemas, é preciso treino para que o corpo seja capaz de administrar a execução assumindo o lugar da mente.
 
2. Não permita que um espaço muito grande de tempo separe cada célula de seu treino, se você está no início do processo isto é mais grave ainda, o cimento ainda está muito fresco e é preciso que você adote o máximo de freqüência possível no seu treinamento para conseguir chegar à cristalização dos movimentos, sob pena de eles permanecerem para sempre no mental, ou seja, quase sem controle, embora aparentemente tudo pareça sob seu domínio.
 
3. Toda vez que você for fazer algo velho ou novo, mentalize passo a passo antes da execução como se você visse um filme em sua mente, isto ajuda na cristalização preparando você para eventualidades.
 
4. Durante a execução, concentre-se exclusivamente no que você está fazendo naquele momento. O que você terá de fazer mais tarde não pode gastar energia de sua mente a toa. Isto não deve ser interpretado como "deixar tudo para cima da hora"; muito pelo contrário, ocupe sua mente com o planejamento durante os momentos de ócio. Do ponto de vista prático, durante a decolagem concentre-se nela e não nas termais do seu vôo. Depois que decolar, você pode relaxar um pouco e aí sim pensar nas termais. Durante a termal, concentre-se nela e não no pouso, mas durante a termal, você pode encontrar um pequeno espaço para planejar o pouso também.
 
5. Cuidado quando você olhar para os outros pilotos e ficar imaginando o que você poderia fazer para ser como eles, você deve olhar para si e respeitar a velocidade de sua evolução natural. Não adianta colocar o carro na frente dos bois e se jogar, o risco de se quebrar é muito grande.
 
6. Melhore a sua velocidade de evolução natural disciplinando seu treinamento. Evite perder finais de semana de vôo por motivos chulos. Mesmo que você não possa colocar 1000 metros acima da decolagem, o simples ato de decolar e pousar é um importante objeto de treino e é claro, de prazer também e deve ser aproveitado ao máximo.
 
7. Faça uma coisa de cada vez, reflita antes sobre cada uma delas imaginando como num filminho cada um de seus atos, concentre-se em cada etapa separadamente. Concentrando-se você gera um fluido precioso que serve como catalisador para seus atos. Seu corpo logo se sentirá capaz de assumir tarefas e sua mente estará livre para se concentrar, por exemplo, na rota de seu vôo de cross country.
 
Compreender o funcionamento da máquina humana é um passo muito importante para que consigamos realizar as tarefas que desejamos.
 
Silvio Carlos Ambrosini – Sivuca – www.ventomania.com.br
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